A viabilização do uso generalizado da tecnologia de manufatura aditiva, popularmente conhecida como impressão 3D, traz possibilidades reais de revolução no modo como nos relacionamos com produtos industrializados. A progressiva adoção da tecnologia fará com que seja mais prático gerar em casa muitos objetos e arcar apenas com os custos da matéria-prima do que a compra dos mesmos. No entanto, a liberdade de fabricar qualquer projeto em casa com apenas uma impressora 3D e algum material base também abre as portas para que objetos de uso controlado sejam produzidos por qualquer indivíduo, incluídas aqui as armas de fogo. É fácil imaginar o efeito que isso teria sobre os sistemas de segurança, as relações internacionais, e a vida social em seu todo.
O processo de impressão 3D é conceitualmente simples. Utiliza-se um software de modelagem em 3D para desenhar o objeto desejado ou suas múltiplas partes e na sequência escolhe-se um material base no qual ele será impresso: normalmente algum tipo de plástico, equivalendo às tintas que usamos em impressoras comuns. A impressora 3D possui em seu centro um vão com apenas uma base, e é em cima da base que uma cabeça móvel carregada com a matéria-prima vai depositando camada por camada uma cópia do objeto desenhado e, ao longo de algumas horas, esse processo é repetido com precisão e sem desperdícios, até o surgimento do objeto final.
Para a indústria, esse processo não é novo, existindo desde o fim da década de 1980. No entanto, o preço proibitivo das impressoras 3D fez com que seu uso não se disseminasse. Isso mudou em 2008, com o lançamento da linha de impressoras de código aberto RepRap, capazes de imprimir cópias de si mesmas. Assim, uma única máquina serve como base para que toda uma rede delas se construa em uma região ou dentro de uma comunidade. A consolidação do conceito ocorreu no ano seguinte, quando a empresa MakerBot Industries entrou no mercado e popularizou impressoras de boa qualidade vendidas a preços relativamente acessíveis.
Adendo da revisão de 2018 do artigo: A MakerBot Industries alcançou um pico de 100 mil unidades vendidas em 2016, mas encara competição progressivamente mais forte de rivais menores, o que a levou a investir na produção de impressoras mais baratas, diminuindo seu lucro advindo das máquinas, mas aumentando o caixa relativo a matérias-primas e suporte técnico. O mercado como um todo continua a crescer, apesar do entusiasmo parecer ser menor do que antes.
No entanto, poder produzir qualquer objeto inevitavelmente inclui aqueles que são benéficos e aqueles que são nocivos, de modo que armas dos mais variados tipos já se encontram em estado avançado de produção. Um precursor do movimento foi o estadunidense Cody Wilson, fundador da Defense Distributed, um grupo sem fins lucrativos sustentado por doadores que é voltado ao desenvolvimento de projetos de código aberto de armas de fogo. Eles não são os primeiros ou os únicos a atuar nesse campo, mas se tornaram peça central do lobby a favor das armas impressas, largamente devido ao carisma de Wilson, que se considera um anarquista.
O grupo deseja manter o direito civil estadunidense de portar armas, produzindo, publicando, e distribuindo sem fins lucrativos uma série de informações relacionadas à produção caseira de armas de fogo. Inicialmente, seus esforços eram focados na fabricação de partes específicas, mas em 2013 o grupo lançou o primeiro projeto conhecido de arma de fogo totalmente impressa, a Liberator. Essa arma possui código aberto de fácil obtenção, e comporta apenas uma bala por vez. Enquanto fontes como a Popular Mechanics consideraram a arma de baixo risco, testes feitos pelo próprio governo dos EUA apontam a eficiência do modelo. A Liberator conseguiu penetrar 27 centímetros de gelatina balística nos testes, e disparou oito tiros consecutivos antes de quebrar, o que a categoriza como uma arma letal, apesar de seu desenho ser considerado primário e propenso a falhas.
Os arquivos tiveram sua remoção da Internet ordenada em dois dias pelo governo dos EUA, mas foi tempo suficiente para que o projeto ficasse permanentemente guardado em computadores de todo o mundo. Interessados passaram a poder estudar o funcionamento da arma, e caminhos foram abertos para versões aperfeiçoadas. No final de 2013, foi produzido um pequeno rifle totalmente impresso em plástico, capaz de disparar 14 tiros antes de quebrar, que mesmo sem potência letal é invisível a detectores de metal comuns. Em 2014, uma réplica de .38 chamada Zig Zag Revolver alegadamente custou 500 dólares para ser fabricada por um cidadão japonês de 28 anos, Yoshitomo Imura, que se tornou a primeira pessoa a ser presa por produção e posse de uma arma impressa, após divulgar em mídias sociais que considerava a posse de armas um direito humano, ao mesmo tempo demonstrando mais de uma arma que havia impresso.
Adendo da revisão de 2018 do artigo: O problema que conecta todas essas armas, e continua a inviabilizar até hoje armas de fogo impressas de alta qualidade, é o fato de que por mais que se possa produzir a maioria dos componentes da arma em plástico, as partes que efetivamente esquentam com a saída do projétil acabam sofrendo dano demais, quebrando ou simplesmente falhando. A maioria dos projetos de sucesso conhecidos faz uso de uma peça metálica adicional pré-fabricada, de fácil adiquisição em países armamentistas como os EUA, mas de acesso difícil em outros casos.
A impressão caseira utilizando metal, também conhecida pelo nome de sinterização, progride a passos rápidos, e apesar de impressoras de qualidade não estarem acessíveis ao grande público, já existem armas sendo impressas com capacidade comparável a armas de fogo industriais. Do mesmo modo que observamos a queda de preços a cada ano das impressoras que se utilizam de material plástico, também veremos esse progresso nas de matriz metálica. Enquanto no passado recente o custo de uma impressora capaz de lidar com metais chegava aos milhões de dólares, o preço caiu para a casa das centenas de milhares de dólares, e continuará a ser progressivamente fracionado.
Casos de armas impressas atraindo o interesse de criminosos começam a surgir. Em fevereiro de 2015, a polícia australiana encontrou em Queensland, na casa de um homem acusado de crimes relacionados a armas e violência, diversas peças impressas em 3D prontas para serem montadas e transformadas em diversas armas. Em junho do mesmo ano, a polícia de Hong Kong prendeu um grupo terrorista local que estocava em um galpão diversos explosivos, máscaras, réplicas de rifles, material anti-governo e junto a todos estes materiais, uma impressora 3D. A polícia acredita que a intenção dos terroristas era de usar a impressora para modificar as réplicas de rifles, de modo a transformá-las em armas com poder de fogo real.
Então, armas de fogo impressas em 3D são uma ameaça legítima? Tudo indica que sim. Tais armas estão ficando mais sofisticadas e plausíveis de serem utilizadas em operações criminosas ou terrorista. Uma vez amadurecido o processo, infratores poderão dispensar o contrabando de armas e privilegiar a produção em escala de suas próprias armas, tanto por questões de segurança quanto de economia. Não será possível rastrear essas armas de maneira tradicional, e igualmente não há como fazer uma interrupção na linha de suprimentos, pois seria difícil impedir a produção das matérias-primas relativamente simples necessárias ao processo. Para contrapor isso, seria necessário tentar monitorar a produção e impressão de tais armas pela Internet, algo que poderia ser contraposto fazendo com que as máquinas ficassem totalmente desconectadas da rede. O jogo de gato e rato originário dessa configuração traria uma nova dimensão para como percebemos conflitos armados e avançaria o conceito de guerra digital para outro patamar.
Em países em desenvolvimento com forças de defesa consolidadas, como é o caso do Brasil, ainda continuará fazendo mais sentido para grupos criminosos desviar armas de órgãos público de defesa, pois a relativa facilidade de fazê-lo não justifica um curso mais criativo de ação. Criminosos menores continuarão a comprar armas de calibre baixo, facilmente adquiridas de modo ilegal dentro do continente. Ou seja, são necessárias condições políticas específicas para que faça sentido o investimento em armas impressas em 3D. Por hora, elas se apresentam como alternativas toscas ao invés de substitutas para armas tradicionais, mas em longo prazo é plausível pensar em um aumento do uso das mesmas, principalmente nas mãos de terroristas.