Após o fim da Guerra Fria, uma série de discussões foram realizadas, particularmente nas Nações Unidas, apontando para um futuro mais cooperativo[1]. A política global não seria mais determinada apenas pelos Estados e um punhado de empresas poderosas. A noção de Governança Global surge e floresce entre 1992 e 1995, à medida que cada vez mais atenção se concentrava em torno desse tema.

No entanto, algumas iniciativas intergovernamentais experimentais envolvendo atores não estatais já existem há décadas. Um exemplo de tal iniciativa é a Organização Internacional de Satélites de Telecomunicações (INTELSAT), fundada em 1964, como uma amalgama de empresas estatais e privadas. Seu objetivo principal era a coordenação das operações de satélites, o que pavimentou o caminho para a revolução da comunicação do século XX[2].

Um exemplo único desses tipos de estruturas de governança, conhecido como o modelo multistakeholder[3], também foi adotado dentro do ecosistema da Governança da Internet. De acordo com as definições da Agenda de Tunes de 2005[4], as Nações Unidas afirmaram que o processo de Governança da Internet deve incluir a opinião de toda a comunidade interessada, sem preferência ou privilégio particular para uma indivíduo ou grupo específico.

Para a Governança da Internet, isso significa que os operadores de rede ou líderes institucionais não são as únicas partes capazes de tomar decisões. Em vez disso, qualquer parte que se sente afetada e envolvida é bem-vinda para contribuir com o processo. Ao término de qualquer discussão, espera-se que o resultado final seja baseado no consenso do grupo, podendo ser aprovado e aplicado de forma que a comunidade na sequência caminhe em uma direção construtiva.

É importante notar que isso não significa necessariamente que o resultado será ideal. Em vez disso, o objetivo é muitas vezes o rough consensus[5] (Tradução segundo Gatto, 2016: "consenso pragmático", [referência externa]), uma área cinzenta onde nenhuma parte pode declarar vitória ou derrota, e há espaço suficiente para que todos se beneficiem. Sempre haverão atores que sairão do processo um pouco melhor ou pior, mas o objetivo é torná-lo o mais inclusivo possível.

A forma como o modelo multistakeholder é aplicado difere de acordo com o setor em questão. A Organização Internacional de Normalização (ISO), por exemplo, exige que os participantes demonstrem credenciais relacionadas à engenharia ou outros conhecimentos similares antes de poderem contribuir para o processo de tomada de decisão. No entanto, as comunidades de Governança da Internet tendem a encorajar contribuições de qualquer parte interessada, independentemente de suas credenciais ou experiência prévia.

Dada a sua natureza transnacional, faz sentido que a Internet possua um método diferenciado de governança. Pode-se dizer que isso se inspira em seu design técnico: o tráfego de dados da rede mundial de computadores é roteado por uma infinidade de caminhos. Pontos geográficos, nacionalidades ou fronteiras são bastante transparentes para o próprio sistema. Apesar de uma grande quantidade de tecnologias diferentes e um número substancioso de fabricantes/operadores, a Internet funciona como uma única rede transnacional.

Entender essa estrutura lembra a montagem de um quebra-cabeça. É somente por meio da combinação de peças diferentes que a imagem inteira pode ser vista. No nível base, uma estrutura física de cabos e ondas eletromagnéticas conecta o mundo, mas na ausência de decisões coordenadas à respeito de sua operação, eles pouco podem fazer. A Internet Engineering Task Force (IETF) é o órgão multistakeholder responsável pela gestão dos padrões que definem o conceito de Internet conforme o entendemos hoje, criando padrões voluntários para manter e melhorar sua usabilidade e interoperabilidade.

Uma vez que os padrões são adotados, é necessário que eles sejam utilizáveis ​​e implantados por organizações como a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). A ICANN foi criada em 1998 para garantir uma operação estável e segura dos sistemas de identificadores únicos da Internet. Ela é estruturada e evolui de forma que todos tenham voz no desenvolvimento de suas políticas. A comunidade da ICANN é composta por uma ampla gama de governos, empresas, organizações, indivíduos, militantes da sociedade civil, registries, registradores, provedores de serviços de Internet (ISPs), iniciativas com ou sem fins lucrativos[7].

As estruturas políticas seguem uma abordagem bottom-up[6], também conhecida como ascendente, onde qualquer pessoa da comunidade pode fornecer aditivos através de seu respectivo grupo de representação. Em termos de estrutura, um bom exemplo da abordagem praticada "de baixo para cima" na ICANN é a representação ambiciosa dos 2.1 bilhões de usuários de Internet por parte do chamado At-Large Advisory Committee (ALAC). Como Olivier Crépin-Leblond descreveu bem em seu artigo [8], o ALAC é dividido em cinco organizações abrangendo todos os continentes. Ele é focado em colecionar ideias de usuários finais e convertê-las em insumos para o processo formal de formulação de políticas. A igualdade de expressão em relação a outras partes interessadas, como governos e o setor privado, é assegurada por vários mecanismos, incluindo um assento de votação na Board (ou Conselho) de diretores da ICANN, a participação em grupos de trabalho intercomunitários, e um mandato para fornecer conselhos na formulação de políticas de todas naturezas. O ALAC depende fortemente da própria Internet para buscar e colher contribuições das mais de 200 estruturas compostas por voluntários da sociedade civil que compõe essa rede.

Se pensarmos na substanciosidade das pautas sendo debatidas na ICANN, um acalorado debate que tem ocorrido há anos e que atingiu seu ápice em 2017 diz respeito ao uso de termos relacionados à geografia em nomes de domínio. Cada grupo de partes interessadas possui uma visão particular sobre o problema. Para avançar o esforço, a comunidade está empregando medidas inovadoras, como a mediação externa, para chegar a um rough consensus. O progresso pode ser lento, mas é constante e em contínua evolução.

Assim, vemos que a função principal da ICANN é de fornecer uma estrutura para que o conjunto de regras que direcionam o futuro do Sistema de Nomes de Domínio (DNS) seja decidido de forma consensual, com o benefício de um mecanismos de mitigação de conflitos próprio.

Esta abordagem pode ser considerada arrojada, mas somente até ser percebido que este sistema já funciona há quase duas décadas de maneira estável, resiliente e segura. Ele permitiu que a Internet crescesse rapidamente e sirva a um propósito público. Futuros desenvolvimentos tecnológicos podem presenciar o surgimento de muitos novos modelos de governança participativa, e os modelos atualmente operacionais podem servir de inspiração para moldar esses desenvolvimentos.

Lista de referências